“Avatar: The Last Airbender” (2024) – Tudo mudou quando a Nação do Fogo atacou… pela terceira vez

*contém spoilers ligeiros*

Desde o seu lançamento em 2005, o desenho animado Avatar: The Last Airbender tem sido, para audiências de várias idades, objeto de culto, seja pelo seu carismático elenco de personagens, a sua narrativa cativante com um humor muito próprio, o seu universo fantástico ou as bem trabalhadas e construídas relações entre as personagens. A pergunta é: conseguiu a nova versão live-action da Netflix seguir as pegadas grandiosas deixadas pelo original, corrigindo a estrondosamente errónea tentativa passada de M. Night Shyamalan, e arrecadar uma nova geração de fãs para a história de Aang?

Para os menos familiarizados, no universo de Avatar: The Last Airbender existem quatro nações em que cada uma representa um elemento (Água, Fogo, Terra e Ar), podendo parte da população controlar o respetivo elemento da nação à qual pertence, à exceção do Avatar, uma figura única com diversas vidas passadas com a habilidade de manobrar os quatro elementos. A história segue Aang, um jovem airbender (um manobrador do ar) que descobre ser o Avatar pouco antes de a Nação do Fogo iniciar uma guerra na qual invade as outras nações, cometendo um genocídio na Nação do Ar – ao qual Aang não assiste pois, devido a um acidente, passa cem anos congelado sem deixar rasto e levando a figura do Avatar ao desaparecimento. Após esses cem anos, durante os quais a guerra perdurou, é encontrado pelos irmãos Katara e Sokka e, assim, se inicia a tentativa de treinar Aang em todos os elementos para finalmente dar fim à guerra começada pela Nação do Fogo.

O desenho animado americano de sucesso passa agora a ser uma série original da Netflix; porém, a tentativa de o tornar um live-action já teve lugar: em 2010, M. Night Shyamalan transformou a série num filme, o que resultou num estrondoso fracasso pela péssima execução em diversos aspetos, destacando-se a clara ausência da etnia das personagens nos atores que as representaram, uma péssima adaptação da narrativa original e performances fraquíssimas. Com este legado de altos e baixos, a série da Netflix tem uma enorme pressão em cima: fazer justiça à série original e apagar os erros cometidos pelo live-action anterior.

De facto, este novo live-action supera a tentativa passada, porém não atinge os parâmetros necessários para ser uma boa adaptação do original. Algo que é necessário neste tipo de adaptações é dar algo de novo à história sem a danificar, como foi o caso de The Last Of Us, e ainda que tenhamos algumas sequências de algo adicionado que não estava presente originalmente (a sequência inicial da Nação do Ar, por exemplo), não adicionam algo de inédito, porém canónico, que entregue aos fãs mais antigos (o público alvo desta adaptação) algo porque valha a pena rever a história que já conhecem tão bem. Visualmente, a série está exímia: desde os planos que espelham a animação original detalhe a detalhe à recriação dos diversos cenários e paisagens, todo o trabalho posto pela produção foi bem executado e transmite a beleza do mundo de Avatar. O figurino está também belíssimo, captando na perfeição a essência de cada nação nos trajes de figurantes e personagens secundários como também nos das personagens principais, que, sendo icónicos, estão fiéis ao original, trazendo uma sensação nostálgica aos fãs. A própria caracterização física destes personagens foi trazida à vida magnificamente nos penteados e maquilhagem feitos ao elenco.  É notada, porém, uma certa avareza e poupança nos efeitos especiais quando se fala na curta aparição de Appa e Momo, dois personagens muito presentes no original que, obviamente, necessitariam de CGI sempre que estivessem presentes. Esta escolha parece ter sido feita para direcionar os esforços para os visuais e, é claro, os efeitos no bending. E já que se fala no bending, este é também um ponto positivo devido aos tais esforços postos no CGI e especialmente na coreografia de luta que se mantém fiel aos estilos de cada tipo de bending e é bem coreografada.

No entanto, o formato típico de uma série original da Netflix compactou a série de forma a que muito do que a torna única se perdeu, seja nas pequenas mudanças e detalhes que só os fãs vão reparar, ou em mudanças drásticas que afetam a história. A jornada foi encurtada, perdeu intensidade, tornando o clímax, os eventos principais e os finais desta primeira temporada menos emocionantes. A trama, ao ser compactada, perdeu também o elemento de exploração da vastidão do mundo que rodeia e afeta as personagens, enquanto que o ritmo demasiado veloz da cronologia dos eventos não é salvo pela longa duração dos episódios.

Traços essenciais das personagens, especialmente no trio protagonista, que os direcionam num caminho a percorrer, foram apagados. O machismo de Sokka, que é aos poucos desconstruído por vários acontecimentos durante a jornada da primeira temporada da série original, foi eliminado, talvez devido ao medo da cultura de cancelamento; o fogoso temperamento de Katara foi apaziguado; o sentimento de culpa de Aang é elevado a um extremo, tornando-o cansativo e desnecessário em vez de enriquecer o enredo. Já outras personagens que, embora secundárias, sejam de bastante significância, tiveram as suas características apaziguadas ou até mesmo apagadas, afetando consideravelmente a história em si e o charme único das mesmas. Existem exceções, claro, pois algumas personagens mantiveram a sua essência devido à maestria de quem as interpreta e uma pequena ajuda do roteiro, que infelizmente não ajudou todos.

O roteiro e a atuação do elenco são os elementos em que a série principalmente peca, desde as mudanças feitas devido a decisões criativas em prol do formato a outras que alteram os personagens e adicionam até clichês que desafiam a sobrevivência da individualidade de Avatar: O humor único do original, por vezes emergindo à superfície no seu típico e excelente timing, foi afundado na seriedade e maturidade exagerada dada a esta adaptação. Já a introdução de material de world-building (mitos, plots e personagens secundários, elementos do funcionamento do mundo, etc…) foi feita de forma um tanto quanto peculiar e brusca, por vezes misturando vários acontecimentos que não aconteceram ao mesmo tempo num só episódio (uma escolha criativa compreensível, mas ainda assim impactante). As relações entre as personagens principais foram mal exploradas, tirando-lhes a substância que foi tão fundamental para a série original, enquanto que outras foram bastante bem representadas entre personagens secundárias (como a relação tio/sobrinho de Iroh e Zuko).

Admitidamente, diversas alterações são necessárias e até obrigatórias, especialmente devido à limitação que um live-action tem comparadamente a uma animação, mas decerto algumas deveriam ter sido evitadas, tais como a mais evidente, significativa e escandalosa: durante toda a temporada, Aang não aprende a manobrar o elemento Água. Este, voltando ao formato original, era o objetivo principal da primeira temporada, sendo que as duas seguintes correspondem à aprendizagem, cada uma, dos outros dois elementos que faltam ao protagonista dominar, a Terra e o Fogo (já que o Ar é o seu elemento principal). Esta decisão trai a própria premissa da série, a de uma figura única que tem a capacidade de manobrar todos os elementos e acaba por manobrar apenas um, quebrando a expectativa dos espectadores e tirando também uma das características mais destacantes e marcantes à personagem principal. Pode até dizer-se que esta alteração e tantas outras mostram uma falta de carinho pelo material original (o que não seria descabido) porém alguns detalhes que remetem a eventos de emoções fortes foram incluídos para os fãs mais fiéis deixarem-se levar pela nostalgia. As notas de “Leaves From The Vine” discretamente introduzidas na cena sobre o filho de Iroh com certeza levaram muitos às lágrimas; este e outros pequenos detalhes revelaram algum trabalho de bastidores de estudo do material original.

É também lamentável a atuação do elenco jovem, que parecia promissora devido ao carisma dos intérpretes, que infelizmente não foi transmitido às personagens. À exceção de Zuko e Suki, grande parte das personagens principais foram afetadas por uma falta de estudo, seja pelos roteiristas seja pelos atores que as interpretaram. O valor emocional fica muitas vezes perdido na rigidez do diálogo, excessivamente direto ao ponto, sem nuances e cheio de clichês, e a entrega das falas é feita com mau timing e falta de emoção. Se a essência das personagens foi primeiramente afetada pelo roteiro, a atuação do elenco danificou-a irreversivelmente, pois a falta de emoção transmitida retira personalidade e peso tanto ao envolvimento entre elas e com o mundo que as rodeia como às suas histórias pessoais. Mesmo sendo um enredo cheio de ação, o que se destaca na animação não são as lutas épicas mas sim as suas personagens únicas, aqui tornadas banais e até vazias devido às suas relações mal exploradas, essências apaziguadas e uma atuação fraquíssima. A questão está mesmo em quem é o maior culpado: o elenco ou o roteiro.

Avatar: The Last Airbender já teve a confirmação da Netflix para mais duas temporadas no futuro, que talvez sejam do interesse dos fãs mais casuais do serviço de streaming, porém duvido que sejam relembrados da existência delas até que a propaganda seja divulgada em peso. Já os fiéis fãs da série original, desiludidos, não deverão voltar a não ser por pura curiosidade do rumo tomado nas decisões criativas, que não parece promissor. Por este andar, no final da série, a Nação do Fogo pode ainda não ter sido derrotada e Aang ainda só manobra o elemento Ar.

Emília Silva

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