Entrevista. Paulo Carneiro: “O cinema que interessa é o que se universaliza”

© Diogo Ventura

Os nossos integrantes Filipe Afonso e Marta Carvalho tiveram a oportunidade de assistir ao filme, Via Norte, na presença do realizador Paulo Carneiro e do escritor João Pedro Vala. Após a exibição e uma conversa com o público, Carneiro sentou-se com os críticos do Nucivo e desenrolou-se uma conversa relaxada sobre a estreia da sua segunda longa-metragem, que chegou aos cinemas portugueses no passado dia 11 de janeiro.

Via Norte acompanha Paulo Carneiro ao longo de 2000 km em busca de compatriotas que, como ele, têm uma grande paixão por carros. O que une os diferentes testemunhos é a história de pessoas que se viram forçadas a deixar Portugal em prol de uma vida melhor na Suíça. Em Via Norte, o automóvel é uma vertente para discutir questões de identidade e a noção de comunidade, onde as fronteiras entre sociedade e território são derrubadas e parte-se em busca de casa incerta.

Filipe Afonso: Paulo Cordeiro, muito obrigado…

Paulo CARNEIRO: (interrompendo) Carneiro. (risos)

Marta Carvalho: Vamos ter de transcrever isto! Pôr isto bonito…

Filipe Afonso: Paulo Carneiro, muito obrigado por estares aqui connosco para esta entrevista sobre o teu novo filme, o Via Norte ou… Como é que se chama em francês?

Paulo Carneiro: Périphérique Nord, mas a estreia comercial em Portugal é Via Norte.

Filipe Afonso: Foste produtor, realizador e a cara principal deste filme. De que forma é que achas que estar à frente da câmara te afetou enquanto cineasta?

Paulo Carneiro: A decisão de estar em frente à câmara, como vocês devem calcular, é um bocado posicionar-me à mesma altura dos personagens deste filme. Para mim, é importante manter um posicionamento ao mesmo nível que eles, acho que isso também cria uma certa empatia não só com o espectador, mas com eles próprios. Obviamente que é sempre complicado estar à frente e atrás da câmara, de certa forma. Mas eu, juntamente com a diretora de fotografia [Laura Morales], trabalhamos nisso de forma a definir um enquadramento a priori mesmo antes de filmar para perceber de que forma me poderia deslocar na área.

Não é fácil. Faz com que o filme tenha de ser muito escrito. Apesar de as conversas serem muito expontâneas, o filme tem de ser muito escrito para eu ter a capacidade de estar preparado para aquilo que a própria realidade, e essa espontaneidade das conversas, me trariam. Estou preocupado com uma série de questões: antes de preparar tudo para filmar, estar diante da câmara, pensar de que forma é que me vou movimentar dentro do quadro espontaneamente e, ao mesmo tempo, ir acompanhando a conversa… Isto faz com que cometa alguns erros, e vocês devem ter percebido isso, mesmo frases ou palavras mal ditas, pensamentos fora de contexto. Mas de certa forma o filme trabalha essa fragilidade, não só dos próprios personagens, como de mim, e acredito que isso faça com que dê o corpo às balas e estou ao mesmo nível, permite-me não ter uma posição de poder perante aquelas pessoas.

Marta Carvalho: Vamos falar agora do tópico de “cinema real”. Citando-te, que fui ver coisas que disseste: “quero fazer filmes em que as pessoas que participam neles gostem de os ver”. De onde é que surgiu esta necessidade de que o cinema não precisa de ser exclusivamente uma arte eloquente, só de alguns para alguns?

Paulo Carneiro: Acho que foi convosco que falámos no final da sessão. É um filme que tem várias camadas de entendimento. Há coisas que numa sessão não se conseguem ver, o filme pode ser visto três ou quatro vezes e vão estar sempre a descobrir coisas. Acho que é um filme que pode servir a cinéfilos e pode servir a qualquer pessoa que não esteja familiarizada com o cinema, tem esse poder de empatia. Também é um filme que tenta lutar contra o preconceito em relação a estas pessoas, de classes humildes. Era indissociável, impossível pensar que não serviria a pessoas de classes humildes ou mesmo sem qualquer tipo de literacia, porque são as pessoas que entram no filme, e para mim isso é super importante.

É um compromisso desde o início. Mesmo antes de fazer o meu filme anterior, Bostofrio (2018), sempre foi um compromisso porque me parece que não possa deixar de existir esta tentativa de imparcialidade. Se, de repente, fizesse um filme com um  “sombraceirismo” gigante e fizesse uma coisa que aquelas pessoas que eu filmo não gostassem de ver, isso sim seria uma tentativa falhada de fazer cinema. Eu próprio venho de classes humildes, tive a possibilidade de estudar, os meus pais trabalharam para isso, mas as minhas origens não são essas. Quero falar não só às pessoas que entram nos meus filmes como quero falar aos meus amigos, quero falar à minha família e depois quero falar a toda a gente. E toda a gente não exclui os intelectuais. É um cinema que se propõe a isso.

Marta Carvalho: De todos para todos, não de alguns para alguns. Mas de facto usaste um instrumento de comunicação muito famoso no mundo do cinema, que é o carro. Podemos presumir que isto é uma paixão pessoal? Juntar o útil ao agradável?

Paulo Carneiro: O carro é uma paixão pessoal e, quer dizer, fazer um filme e rodar um filme ainda me diverte. A partir do momento em que me deixar de divertir, não sei se continuo a fazer cinema.

Marta Carvalho: Então como é que foi experienciar este carro como um veículo de comunicação e fazer dele o motor do teu filme?

Paulo Carneiro: Eu gosto muito do meu carro, que é aquele Toyota Celica que vocês veem, aquele carro vermelho. Acho que o carro também faz transparecer a personalidade, não só a minha como daquelas pessoas. A cor, a forma como modificas o teu carro, o que é que lhe acrescentas, etc., etc.. Há também esta ideia, uma inversão sociológica de fazer a viagem até à Suíça que é o contrário do que aqueles emigrantes fazem porque voltam a Portugal durante o Verão, isso para mim também me interessava. E o carro também, se pensares, é interessante no sentido de que é também um desbloqueador de conversa, é um quebrar do gelo. E quando não estava a conseguir criar uma certa empatia a nível pessoal, o carro também servia de ligação. Começava a falar do meu carro para falar do carro deles, dos personagens, e conseguimos chegar a um entendimento. Há uma coisa muito orgânica e o filme também acaba por falar disso. Os carros também ajudam-nos,  de certa forma, a aculturar-se àquele lugar porque são um ponto de partida para encontros entre uma comunidade de gente que tem carros.

Marta Carvalho: Outra frase que gostei muito, como afirmaste: o facto de não filmar de noite não é pop. Podemos entrar um bocadinho dentro dessa questão?

Paulo Carneiro: Eu acho que é um bocado pop, mas não filmei à noite para ser pop. Filmei à noite porque para mim era importante que se visse o trabalho. E a disponibilidade daquelas pessoas é apenas à noite, que é quando saem do trabalho depois de trabalhar, e isso para mim era importante. E não só, se repararem todos os décors do filme são uma espécie de espaços meio clandestinos. Com a nossa própria forma de trabalhar, porque muitos sítios não tínhamos licenças para filmar, e estes encontros entre as pessoas, que são pessoas que estão à margem da sociedade, isso é também uma espécie de representação daquelas pessoas. Elas encontram-se em lugares clandestinos, à margem, e eles são a margem, vivem em áreas suburbanas. Mesmo eu que venho da Pontinha, que é a suburbana de Lisboa, isso para mim era importante. E também costumo dizer que é um cinema que vem da rua, é um cinema suburbano, e acho que liga à coisa de cinema de todos para todos. E para mim é implícito, não é explícito, mas naquele plano final em que vocês veem o retrovisor, está um galhardete que é da Junta de Freguesia da Pontinha.

São pequenas coisas que eu acho que se vão vendo no filme, se o voltarem a ver mais que uma vez. Parecem-me importantes. E esta coisa da noite, do clandestino, da margem, está tudo interligado. Não escolhi filmar praticamente todo o filme à noite por ser giro. Há um gesto para chegar ali, e o gesto é isso: filmar a emigração sem mostrar o trabalho, mas mostrando o trabalho, implicitamente, através da noite.

Filipe Afonso: Como é que tu conseguiste fazer um filme como o Via Norte? Como é que tu te preparas para um filme deste tipo e quão diferente foi o conceito versus o produto final, que se encontra agora em exibição?

Paulo Carneiro: Foi um filme feito com muito, muito low budget. É uma série de esquemas: era para ser uma curta-metragem, uma equipa de três pessoas, uma câmara emprestada, como podes imaginar… Um carro na Suíça, o material todo dentro do carro, viajar pela Suíça toda, depois também tem uma parte que é a França, acaba também por ter Portugal, onde também filmámos cenas extras, Porto, Leça da Palmeira… O que me interessa é cinema que cria geografias. Para o espetador é um lugar que é uma espécie de não lugar, é um lugar que não existe, e do ponto A ao ponto B, que estão sempre a ver no filme, é tudo mentira. No sentido de que, o ponto A não dá ao ponto B, o ponto A dá ao ponto Y. (risos) Geograficamente, o filme é todo mentiroso. Isso também é o trabalho de montagem.

Na verdade, foi difícil e foi fácil. Eu trabalhei com o Ricardo [Leal] no som. Eu cheguei à Suíça, fiz a viagem de carro, nunca tinha estado na Suíça, o Ricardo liga-me e diz “temos de começar a filmar, que arranjei não sei quantos microfones de lapela, são dos melhores do mercado, vou pedir para os testar” (que ele ia fazer um outro filme), “é mesmo agora a oportunidade”. Então comecei à procura de pessoas: no Facebook, na rua, amigos de amigos, amigos que tinham amigos lá e esses amigos conheciam outras pessoas, funcionou um bocado assim. Meio freestyle, sempre meio na clandestinidade. É difícil filmar na Suíça, não podes fazer barulho a partir das dez da noite. Nós fomos encontrando essas margens: também filmámos muito em zonas suburbanas, e o filme foi-se fazendo. Depois o complicado foi conseguir fazer a pós-produção. Quando conseguimos o Pedro [Canavilhas], que depois entra com a produtora Vento Forte, aí conseguimos a estreia no festival Visions du Réel, aí já tivemos apoio da Gulbenkian, que nos ajudou a terminar o filme, que acaba por ser muito caro. Depois é o estúdio, o trabalho de som é muito caro, a imagem também, cheguei a voltar à Suíça para fazer correção de cor, e o filme foi-se fazendo.

É um filme muito barato. É difícil de produzir, no sentido de ser muito do desenrasque e de estar muito ligado à minha personalidade. Eu sou muito resiliente, não desisto. Nunca pensei “vou desistir porque não tenho dinheiro”. Cheguei ao circuito comercial e acredito que não se vê pobreza, acho que o filme está onde tem de estar e não acho que é o budget do filme que o deva desculpar.

Filipe Afonso: Acerca da montagem, como é que conseguiste dar uma linha de orientação, um ritmo ao filme, tendo em conta que é só relatos de pessoas?

Paulo Carneiro: Isso está tudo pensado naquela ideia de que o filme está muito escrito. A montagem está muito pensada, eu já sabia como é que ia cortar. O filme não é filmado com soluções, ou seja, são planos gerais. Filmo aquilo que acho que vai ser o filme. Costumo filmar sempre muito pouco. Aliás fui montador e isso mete-me um bocado de medo, por isso é que acho que filmo pouco.

Não busco soluções. Esta cronologia existe já no momento da rodagem, o filme é praticamente planeado já a pensar na montagem. O filme é quase todo filmado na cronologia em que está montado porque cada novo personagem ia acrescentado coisas e eu ia modificando a abordagem ao próximo e metê-los em relação um ao outro. Eu fui conhecendo as pessoas, algumas pessoas eu só conheci meia hora antes das filmagens, mas já havia uma espécie de pré montagem com os temas. Sabia onde queria começar e sabia onde ia acabar. Sabia que tinha até aos 15 minutos para deixar de falar de carros e começar a falar de outra coisa. Se repararem, os primeiros dez minutos só se falam de carros, e a coisa começa a subir e a partir dos 15 minutos, pronto, já está, se não, perdes o espetador.

Esse objetivo foi sempre muito claro, começar nos carros. O que interessa ao cinema é que se fala de um telemóvel para falar da exploração do lítio, das pessoas que vão ser prejudicadas se se fizer uma mina de lítio. E isso é que é o cinema que interessa. Falares de uma garrafa de água como ponto de partida para outra coisa.

Marta Carvalho: Do particular para o geral.

Paulo Carneiro: Exatamente, para depois se universalizar, que não acho que é um filme sobre emigrantes portugueses… Mas isso já lá vamos. (risos)

Marta Carvalho: Pois vamos. O Via Norte fala sobre uma crise de identidade, não nos sentirmos bem no nosso país natal nem na nova casa no estrangeiro. Achas que isto é um aspeto pouco abordado quando se fala em viver fora para conseguir pagar as contas?

Paulo Carneiro: Às vezes não se pensa muito. É difícil aculturar-mo-nos a outro país. Portugal tem características muito peculiares, o português, apesar de tudo, é amigável, é aberto…

Estas pessoas foram à procura de uma vida melhor e acho que há um preconceito muito grande para quem consegue emigrar. Mas acho que acontece porque não tiveram essa coragem, e emigrar é um ato de coragem.

Marta Carvalho: Também falo como ex-emigrante de Londres.

Paulo Carneiro: Eu estive na Suíça por sete ou oito meses, mas só pensava “eu não conseguia viver aqui.” E claro, as condições de vida são melhores, eu conseguia viver muito melhor do cinema se vivesse na Suíça, ou mesmo em França. Mas será que vou querer contar histórias ali? Mas agora estou a falar de mim, vou agora falar das outras pessoas.

Há um limbo e há uma amargura. Acho que dois deles já regressaram para cá, há uma amargura para a geração anterior, que voltou, depois de viver em grandes cidades, para aldeias. Há uma amargura qualquer para quem vai embora, apesar do dinheiro (o dinheiro não é tudo), porque efetivamente quem fica é muito duro, e não percebe o esforço e dificuldade que é estar fora.

Marta Carvalho: Também há uma base do que eu vou categorizar como inveja, mas não sei se é bem isso. É a noção de “vais para lá, fazes mais dinheiro”, e ainda admites dizer que tens saudades? É uma inveja um bocado internalizada.

Paulo Carneiro: E há uma pressão.

Marta Carvalho: Há uma pressão para chegar cá e “estar bem” ou ter de mostrar o que é que fazes lá fora. E essa pressão também advém muito do alugar o Ferrari para vir cá.

Paulo Carneiro: Isso é uma resposta a essa pressão. 

Marta Carvalho: E depois é um ciclo que nunca mais acaba. É uma resposta à pressão, as pessoas veem a resposta e nunca mais acaba. É muito estranho.

Paulo Carneiro: Esse lugar, que também é um não lugar, está em todas as emigrações.

Marta Carvalho: Não sei se foste tu ou se foi o teu amigo na conversa depois da sessão que disse que o sentimento de emigração é sempre o mesmo.

Paulo Carneiro: Aquilo que se sente é sempre igual. Quando estavas a ver a história daquelas pessoas na Suíça, não te estavas a ver a ti própria?

Marta Carvalho: Completamente. O sentimento é muito pautado. Londres é uma cidade extremamente cara. Tinha a vida melhor em certos aspetos mas não sei até que ponto é que compensa. E a vida melhor é uma bolinha. Essa vida melhor não me deixa ir ao café ou jantar com os meus amigos.

Paulo Carneiro: A vida não é melhor, é diferente.

Marta Carvalho: É muito diferente, e há o pautar “o dinheiro cria uma vida melhor”. Mas não é sempre assim.

Paulo Carneiro: Não é sempre assim.

Marta Carvalho: E agora outra pergunta sobre isto. Pegaste num tópico muito interessante do emigrante português nos países francófonos. Muitas vezes ridicularizado ou assumido como algo que não é, há mesmo pouca preocupação com esta realidade. Porquê este alvo específico e, além disso, como é que alinhaste as tuas diretrizes de questões? E crês que isso leve a uma bolha cultural, em que os emigrantes não se encaixam nem em Portugal nem no seu novo país? Género de sítio de ninguém?

Paulo Carneiro: Porquê? Porque efetivamente está também relacionado com uma questão de produção. Mas tenho uma tia que emigrou para França e um tio que emigrou para a Suíça. Mas há uma relação direta, porque era esta emigração que via chegar o grande automóvel à aldeia dos meus pais no interior do país nas férias de verão. Está relacionado à minha infância, quando chegavam estas pessoas com estes modelos de carros que nunca tinha visto e via que toda a gente criticava. Via Norte é uma espécie de elogio a esta gente, tentei defendê-los, tentar dar uma…

Marta Carvalho: Uma voz?

Paulo Carneiro: Sim, o meu cinema quer dar voz a estas pessoas. Mas quero fazer um elogio, mostrar o lado corajoso, o ato de coragem que foi preciso para irem embora, quero mostrá-los como uns heróis e defendê-los. Eu não acredito no cinema de três anos. O filme sai em 2022, chega 2023, 2024, a seguir vai para a televisão e depois acabou. Quero que os meus filmes sejam um arquivo.

É francófono, mas não é assim. Os albaneses, na Suécia, também têm carros. De certa maneira, é um arquivo de imagens e sons que marca um tempo e que mostra como é que estas pessoas são, que muitas das vezes são ridicularizadas, mas que nós no filme de certa maneira criamos uma empatia com o espetador, porque são uma boa gente, de bom coração. E era isto que queria mostrar. Mesmo aquelas pessoas que tinham raiva a estas pessoas, que percebem que atrás daquele estereótipo que criaram, são pessoas humildes que estão só a tentar ter uma vida melhor. E que pura e simplesmente gostam de um carro, e o carro, muitas das vezes, sustém esta ideia de ter uma casa. A casa tu não podes transportar para mostrar, como havia a casa dos emigrantes na aldeia, mas a casa que eles têm não a podem transportar. O carro podem. E parece que têm de estar sucessivamente a provar alguma coisa, para não serem ostracizados. O filme é isso: um monumento à emigração.

Filipe Afonso: Esta próxima pergunta tu já respondeste. Era sobre o que gostavas que as pessoas tirassem do filme, já que se trata de um projeto muito direcionado para o público português.

Paulo Carneiro: Eu acho que não é para o público português. 

Filipe Afonso: Não é? Então porquê?

Paulo Carneiro: Eu acho que o filme é universal. O filme estreou comercialmente no Uruguai. Eu acho que é universal porque a questão da emigração existe em todo o lado. Se calhar os Suíços não emigram, mas os Suíços são 20% da população da Suíça.

Filipe Afonso: E os relatos do teu filme são quase todos de portugueses.

Paulo Carneiro: E ainda há o curdo, mas o filme abre a questão. O que se sente é sempre igual. Por exemplo, um emigrante do norte de África, ele pode ter saudades de um peixe que não o bacalhau, que seria o nosso caso. A questão da saudade, o sol, o café, são outras coisas. E esse é o cinema que interessa, o que se universaliza. E Via Norte também faz esse movimento, quando chegamos à parte do curdo, o filme é uma espécie de um abrir portas. Os portugueses abrem portas a esta gente e afinal isto não é só uma coisa de portugueses. Creio eu.

Filipe Afonso: Quando fomos ver o filme, na conversa que se seguiu, mencionaste repetidamente que não acreditavas na categoria de documentário. Gostavas de elaborar sobre isso?

Paulo Carneiro: Claro. Como estava a falar, tu não vais do ponto A ao ponto B. Há uma invenção de uma geografia, que não existe. Eu enganei os suíços, que eles acham que aquilo tudo se passa na Suíça. É mentira. Só por isso já não é documentário, se quiseres. A partir do momento em que metes uma câmara, as pessoas têm uma reação completamente diferente. A realidade está toda alterada, há coisas que são ditas nuns sítios e montadas noutros, coisas que tu não sabes quando estás a ver o filme. O documentário, para mim, não existe.

Quando se fala de documentários em Portugal, tens um público mais generalista que está à espera de ver algo de televisão, ver uma pessoa sentada à frente de uma câmara a falar. Via Norte não é nada disso. Eu acho que há filmes e há filmes. São filmes, sabes? A partir do momento em que dizes que é um documentário, tens a ideia de que não é cinema, é televisão. Para mim, Via Norte tem essa carga autoral, tem essa assinatura. E categorizar de documentário, nos dias de hoje, é quase fazer um género menor. Porque há sempre esta ideia de que o documentário é um género menor. E eu não acho.

Acho que é cinema. Se for um grande filme, é um grande filme. E já não falo do meu, falo no geral. Um grande filme é um grande filme, não me interessa se é ficção, documentário, experimental, animação. O que interessa é o gesto. Ou é bom, ou não é. Seja experimental, ficção, documentário, animação, eu não me importo. Por isso é que acho que é fixe sair dessas coisas.

Filipe Afonso: Já falamos muito sobre o Via Norte, mas na conversa que seguiu à nossa sessão, mencionaste que tinhas vários projetos em diferentes fases de produção. Podemos saber um pouco mais do que se tratam?

Paulo Carneiro: Claro. A Savana e a Montanha é um filme que estou agora a terminar a correção de cor. É um western que se passa em Trás-os-Montes, que mostra a luta das pessoas da aldeia Covas do Barroso, que é ao lado do Bostofrio, que é o nome do meu primeiro filme e a aldeia do meu pai em Trás-os-Montes, que fica a cinco quilómetros da Covas do Barroso. Covas do Barroso faz parte da região do Barroso, que pertence ao Património Agrícola Mundial, distinguido pela FAO e pelas Nações Unidas. Às pessoas de Covas do Barroso quer-se impor aquela que será, esperemos que não, a maior mina de lítio da Europa, um buraco com 600 metros de diâmetro, numa zona protegida. Este filme mostra de que forma é que o povo se organiza para lutar contra esta empresa. Se quiseres, eu costumo apelidá-lo de “western social“. Existem mesmo cowboys, armas e cavalos.

Tenho este outro filme que tem como título provisório Nha Terra Nha Força, que é filmado em Cabo Verde. É em Cabo Verde porque viajei para lá como assistente de realização e descobri esta história, que facilmente podia ser noutro sítio. É sobre um grupo de jovens que vivem numa aldeia no sopé de um vulcão. Houve uma erupção, destruiu uma série de casas e acabaram por viver fora durante algum tempo. Voltaram para a aldeia, estão já há alguns anos a reconstruí-la, a criar os seus filhos, a sua forma de sustento. É um filme que mostra a ideia contrária que se tem na Europa, de que toda a gente em África quer ir viver para lá. Eles querem ficar ali, a criar raízes. Também se trata de um filme de detetives, também há carros. A partir do momento de uma tragédia, começa-se a criar um tumulto na aldeia e, de uma certa maneira, tentam convencer as pessoas a não irem embora, porque eles não querem sair dali.

São estes os dois filmes que tenho. Depois tenho outro filme em desenvolvimento. Está um bocado relacionado com estas pessoas que estão agora na pré-reforma, em vias de voltar a Portugal, que estão a morar na Suíça. São trabalhadores da residência de estudantes onde vivi. É uma altura de limbo. Têm os filhos na Suíça, os netos já não falam português. Eles ficam com a questão se devem ficar na Suíça, onde a reforma não vai dar para cobrir os custos de vida, ou voltam para uma pequena aldeia em Portugal, já que as casas na cidade estão muito caras. Estão ali num momento de…

Marta Carvalho: Quase como uma inversão do problema. Saíram de cá por uma razão e agora estão a debater se vão sair de lá por uma razão parecida.

Paulo Carneiro: Estão ali numa zona de transição complexa.

Filipe Afonso: E essa ideia nasceu na produção do Via Norte?

Paulo Carneiro: Sim.

Filipe Afonso: Seria uma espécie de sequela espiritual?

Paulo Carneiro: Se quiseres. (risos) Na residência onde vivi, percebi que 80% dos trabalhadores são emigrantes. E para aí 70% são portugueses. E os grandes cargos nunca são portugueses. Por exemplo, a diretora da residência é suíça, mas quem trabalha efetivamente, nas obras e na manutenção são sempre emigrantes. E isso também é curioso, faz-nos refletir quando se ouve que os emigrantes vêm tirar os trabalhos aos portugueses. Se pensares, é o mesmo ciclo e o mesmo vício, as coisas funcionam da mesma maneira.

Marta Carvalho: Como é que é trabalhar em várias longas-metragens ao mesmo tempo, especialmente com a dificuldade associada a fazer só uma em Portugal? Como é ser multitasker?

Paulo Carneiro: Eu também sou produtor, estou a produzir outras coisas. É difícil. Faz parte e é um gesto de resistência.

Marta Carvalho: Pois, disseste há bocado que eras resiliente.

Paulo Carneiro: É um gesto de resistência porque o cinema dá-te uma voz, tu tens a possibilidade de usar essa voz e é quase como uma apneia. Para mim é isso. É essa possibilidade de mostrar realidades que me importam, gente que me interessa porque eu gosto muito de pessoas e isso importa-me. É difícil, mas é um amor gigante. Muitas vezes a vida pessoal fica prejudicada. Também sou produtor, estou a produzir muitas coisas também, há muita coisa em coprodução e é difícil. Mais tarde ou mais cedo vou ter de parar um bocado para ter umas férias. Em 2023 eu estive muito pouco tempo em Portugal, entre festivais, trabalhar no Savana e a Montanha porque é uma coprodução internacional. Viver de cinema em Portugal é isso. Ou é assim ou não vives, tens de ir trabalhar noutra coisa ao mesmo tempo. É aguentar-mo-nos, fortes, e acreditar que o próximo será melhor.

Via Norte encontra-se em exibição em 25 salas espalhadas ao longo do país, incluindo sessões diárias em Lisboa no Cinema Nimas, Cinema Fernando Lopes, Cinema City Alvalade e os Cinemas NOS de Alvaláxia e Amoreiras.

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