Reflexão sobre o passado de “Smoke Signals” (1998)

(Este texto foi escrito como parte do meu projecto de final de curso, supervisionado pelo professor José Duarte. Sofreu algumas alterações. Spoilers para Smoke Signals.)

Smoke Signals,' filmed in Spokane and written by Sherman Alexie, named by  Library of Congress to National Film Registry | The Spokesman-Review

Baseado no livro The Lone Ranger and Tonto Fistfight in Heaven (1993) de Sherman Alexie, que também escreveu o argumento do filme, Smoke Signals (1998), realizado por Chris Eyre, relata a viagem de dois jovens nativo-americanos para Arizona, em busca das cinzas do pai de um deles. Através de comentários, sejam eles visuais (a entrada no autocarro) ou através das falas (como os relatos da rádio), mais ou menos subtis, o filme comenta a condição de vida dos nativo-americanos e a destruição da cultura destes.

Logo desde o início se percebe que esta viagem não vai ser apenas de descoberta pessoal, mas também de um passado comum da comunidade nativo-americana. Os pequenos comentários na rádio que referenciam os casinos, os problemas com álcool que afectam a comunidade, ou outros elementos, servem para criticar a forma como a restante sociedade lidou com esta minoria. Tal como é demonstrado num dos planos em que a viagem é feita de marcha-atrás, o percurso dos nativo-americanos no contexto norte-americano não foi de progresso, mas antes de retrocesso.

Este andar para trás não é apenas físico, pois representa um início de uma viagem ao passado, à tradição e à vida do pai de Victor, Arnold. O facto de a troca pela boleia ser uma história, mais concretamente um mito, sobre Arnold e esta ideia de um herói nativo-americano que lutou contra o sistema, representa todos os ideais dos free-spirits e hippies. O início da viagem diz-nos muito sobre o que aí vem, pois somos imediatamente informados da diferença entre Victor e Thomas. Thomas é inocente, acreditando em tudo. Isto é representado pela sua conversa com a ginasta. Já Victor gosta do confronto e entra sempre com um pé atrás. Ele duvida imediatamente da ginasta e entra em confronto com os “cowboys”.  

Por outro lado, talvez ambos sejam inocentes, apenas capazes de ver o mundo da sua forma. A diferença está na maneira como Victor lidou com o seu passado, ou seja, a sua relação com Arnold. Ele zangou-se com o mundo, revoltando-se contra tudo, até a sua cultura, o que o torna mais fechado, resultando assim em alguém que vê o índio como uma figura estóica. Pode-se até dizer que Thomas acaba por ser mais consciente da realidade, visto ficar subentendido que este sabia do motivo da morte dos pais, o que nunca o levou a ressentir Arnold, ou Victor por ser seu filho.

As figuras que encontram, e que colocam obstáculos no seu caminho, também representam uma América que, apesar de algo mudada, continua a julgá-los da mesma forma. Por exemplo, em viagem num autocarro em direcção ao Arizona, até aqueles que são considerados marginais parecem rejeitá-los. O facto do seu lugar ser ocupado por “rednecks”, um com um chapéu de cowboy, o outro com um chapéu que tem estampado “MY GUN CLEANING HAT”, também é relevante. Estes fazem parte de uma América mais tradicional, à qual podemos associar, por exemplo, os cowboys e com os quais estes podem ser directamente relacionados: eles ocupam o seu território e empurram-nos para um lugar menos desejado.

A própria viagem,  todos os locais que encontram, as coisas sobre as quais falam e as bebidas que consomem indicam uma incapacidade da cultura nativo-americana de se separar da comunidade global e globalizada. As duas jovens nativo-americanas, que inicialmente lhes dão boleia, dizem já não beber, algo que prejudica a comunidade, mas substituem o álcool por coca-cola, isto é, uma bebida popular no mundo inteiro e símbolo máximo da sociedade capitalista. Outro exemplo neste contexto poderá ser as conversas sobre Denny’s, uma cadeia americana de restaurantes. Estes dois exemplos mostram a forma como a reserva está e não está inserida no mundo contemporâneo: por um lado, a reserva representa uma fronteira clara de identidade e uma forma de exclusão; por outro, ela não está totalmente fechada quando se fala de consumo, mas apenas o consumo cultural de uma das culturas, a dominante.

Ao longo do filme também vamos descobrindo mais sobre o pai de Victor. Inicialmente apenas sabemos que Arnold salvou Thomas, sem conseguir salvar os pais deste, e como forma de luto cortou o seu cabelo, algo muito importante para um nativo-americano, tal como Victor refere: “An Indian man ain’t nothing without his hair”. O cabelo aqui acaba por representar a liberdade. Mais tarde descobrimos que o motivo do luto de Arnold é a culpa. Arnold estava bêbedo e lançou foguetes para dentro da casa, o que fez com que esta ardesse. Também foi isto que o levou a tornar-se cada vez mais violento, a beber mais e, por fim, a abandonar a sua família. Ironicamente, o dia do fogo é 4 de Julho, celebrado pelos norte-americanos como o dia da independência do país. Esta foi conseguida por via da rebelião contra os ingleses, mas também através da expansão territorial na qual os nativo-americanos, habitantes originais do país, foram vítimas. O alcoolismo de Arnold é representante de uma outra arma que foi utilizada contra os nativo-americanos.

Durante toda a viagem é-nos mostrada a admiração que Thomas tem por Arnold, alguém que ele vê quase como um pai, e o desdém que Victor criou pelo mesmo. Para todas as histórias que Thomas conta sobre Arnold, Victor lembra-se de um acto desprezável do pai, seja agressões a si ou à sua mãe, ou as bebedeiras que o assustavam e, por fim, o abandono da família. Quando chegam ao seu destino, Victor percebe que, apesar de o pai se arrepender de muito, Arnold tem uma visão idealizada do passado, demonstrada pela alteração do final de um jogo de basquete contra dois padres, representantes da cultura branca.

Depois de conseguir as cinzas do pai e descobrir o seu segredo no regresso a casa, Victor e Thomas acabam envolvidos num acidente automóvel com um motorista alcoolizado que os culpa. Victor corre durante toda a noite para pedir ajuda para as outras vítimas do acidente, acabando por desmaiar ao lado de um homem. Mais tarde, com a ajuda das outras testemunhas, incluindo a mulher do condutor alcoolizado, Victor e Thomas conseguem continuar a sua viagem. Esta cena, muitas vezes criticada, pode ser vista de outra forma. Uma mensagem de esperança para a coexistência dos dois povos, por mais utópica que essa ideia pareça.

No final, Victor é capaz de deixar o passado para trás, o que é representado pela libertação das cinzas do seu pai num rio, e crescer com ele, regressando à sua cultura de uma forma mais completa, entendendo melhor a sua própria identidade dentro e fora da reserva. Assim, é mais livre por aceitar o seu passado e por aceitar a relação com o seu pai.

Smoke Signals é um filme muito forte e será para sempre relevante. A história do passado nativo-americano e do que pode ser o futuro é muito mais global. Fala-nos da importância da cultura, do passado e de como este pode ser a base para construir o futuro, mas também nos explica os perigos de viver dele. Recomendo vivamente.

André Janeiro

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